segunda-feira

monólogo

corre corre não pares de correr
respira respira inspira e abranda inspira e abranda
tem calma sussurra apenas apenas
não julgues o horizonte não o podes
tocar assim com a mão de todos os dias.
não grites conseguirás entrar para dentro
da estrada e não dizer. não digas
mas corre corre corre não pares de correr
podes chorar, agora, que ninguém te vê.

acima do rio

nunca os nossos olhos estiveram assim
tão fechados. era inimaginável dentro deles
os detalhes todos de uma varanda, o meio-dia
e o que depois de tantos anos viríamos a descobrir
no remetente de uma carta, no pó de uma estrela
acima do rio. o que não existia parecia tão pouco
quando cruzávamos os dedos das mãos e ficávamos
ali sentados a observar os autocarros que paravam
na rotunda e a ver a água que caía das janelas.

ao certo, só havia a parede

existia um fogão e a suportá-lo era uma pedra
de mármore, quase sempre bem limpa. mesmo
por baixo havia um lugar pequenino e escuro com
duas portas desalinhadas, difíceis de fechar. era ali
que estava a caixa, guardada, religiosamente, a caixa
de bolachas: as campechanas que a avó aurora nos ofereceu
naquele natal não recordo agora o ano
ao certo. lembro-me que não sorri quando
fui receber os tios à porta, nem à prima lúcia que
com a boca ainda lambuzada de iogurte e açúcar perguntava
à mãe se a deixava ir brincar
um bocadinho. eu queria que viesses
depressa e convencesses o cão a não ladrar
de cada vez que eu passava com os meus
brinquedos em frente do tanque da tua
mãe. ao certo, só havia a parede e o estendal
as molas enfraquecidas pela chuva e eu gostava
do frio das tuas mãos.

menina de recados

my heart or a little peace of paper?

e assim terminou a sua carta de amor.

domingo

não sei se haverá uma qualquer substância que diferencie
o sangue de alguém que morre de amor, do sangue de outro
alguém que morre por amor. seriam precisos muitos mortos, muitos
homens a afastar-se da noite e a tentar inventá-la de forma diferente,
a caminho de casa. se assim fosse, daqui a pouco tempo teríamos a luz toda
dentro de uma caixa e os nossos olhos seriam só um líquido destilado dentro de um copo
na extremidade de uma mesa. alguém que me esclareça, que se este for azul
eu não morrerei no dia de hoje, terei ainda tempo para escrever
uma carta a minha mãe. dois minutos chegariam para lhe dizer
que o copo estava a meio e que o ingeri enquanto escolhia a posição
mais confortável no sofá e que iria ali ficar, não para sempre, mas até alguém
se lembrar de tocar à campainha ou simplesmente de mandar três pedrinhas
à janela e constatar que não respondo. depois será rápido até me visitarem
no início de novembro, quando os eléctricos estiverem acumulados de pessoas
e só existirem carteiristas. alguém que me esclareça; que se este líquido for incolor
basta-me morrer a abraçá-lo cá dentro. não vejo nenhum mérito em morrer
de amor e assim de qualquer maneira, mas por amor reinvento alguns gestos e pedaços de história.
nesse dia seremos os dois uma  fracção de um tempo anterior
duas estrelas pontiagudas que se destroçam no céu.