terça-feira

funeral às duas da tarde





















da helena que morreu fala-se pouco.
dizem que havia um homem que a amara
que o seu coração tivera sido enterrado lá longe
numa montanha. dizem que ela chorara muito lá longe
que falara de uma vida inteira escrita num muro
num muro alto num muro alto e escuro. mais alto
do que escuro mas o quanto baste para não se verem
as árvores. da helena que morreu e deste inverno
tem-se falado pouco. dizem que há a noite e o café
e a música que tudo torna diferente e possível.
da helena dizem que inventou o amor dentro de uma casa e
que mais tarde lhe deitou o fogo. que o seu coração ia
cinzento quando o enterraram.


fotografia de b.berenika.



segunda-feira

poderás então entrar e não passar pela porta

esta é a casa onde vivo e a morada é a mesma de sempre.
cheia de coisas mortas para além das tuas mãos.
outra vez as tuas mãos, a memória que guardo das tuas mãos.
as nossas e a ternura do dedo mindinho a dar mais segurança ao mundo. 
existem outras memórias que se recolhem na casa sem que tenha
que lhes pedir. elas sabem do tempo e assim deixam-se confundir nas horas e
rapidamente alteram as cores ao outono. aqui há mulheres sentadas
não se veem os olhos porque os perderam quando chegaram
à idade de reconhecer a verdade toda do mundo. é muito pouco o mundo que
existe agora, nesta casa. o pouco que existe vem em silêncio
reúne o cinzento dos tecidos com a memória dos barcos e dos filhos
que nasceram neles e sem mãos. também há mãos antigas
que não trazem destinos dentro delas e, a essas, guardo-as numa caixa
depois de as beijar muito e de lhes prometer o amor. algumas perguntam
pelo vento das ruas e pedem-me que as ofereça aos filhos que nasceram sem mãos.
digo-lhes que existe um fim de tarde em cada dia e que com ele
uma solidão bonita. digo-lhes que dentro dela podem ficar para sempre.